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Usucapião de imóvel rural: a proteção do pequeno agricultor sob a ótica do STJ
27 DE MAIO DE 2024
Instituto jurídico surgido para beneficiar o pequeno produtor agrário, a usucapião de imóvel rural, também conhecida como usucapião pro labore, está prevista no artigo 191 da Constituição Federal, com redação idêntica no artigo 1.239 do Código Civil.
De acordo com os textos legais, essa modalidade originária de aquisição de propriedade exige a comprovação da posse mansa, pacífica e ininterrupta, por pelo menos cinco anos, de área rural de até 50 hectares, e da sua utilização para produção e moradia.
Ainda que alguns desses requisitos estejam presentes na usucapião urbana, a modalidade rural tem peculiaridades, como a necessidade de que a terra se torne produtiva por meio do trabalho do requerente e de sua família.
Ao relatar o REsp 1.040.296, o ministro Luis Felipe Salomão explicou que as exigências – presentes também em normas de direito agrário – buscam incentivar a produtividade da terra e cumprem a função social de proteger os agricultores. Em suas palavras, usucapião rural caracteriza-se pelo elemento posse-trabalho.
“Serve a essa espécie tão somente a posse marcada pelo trabalho. Para a concretização do direito ao domínio do imóvel rural, a exploração econômica e racional da terra é pressuposto impossível de ser afastado, deixando clara a intenção do legislador em prestigiar o possuidor que confere função social ao imóvel rural”, declarou.
Instituto voltou a ter caráter constitucional em 1988
A preocupação com a regularização de imóveis – sejam eles urbanos ou rurais – não é recente. Quando o Brasil ainda era uma sociedade essencialmente rural, o Código Civil de 1916 trouxe, pela primeira vez, a usucapião para o ordenamento jurídico. Na Constituição Federal de 1934, a usucapião rural foi prevista expressamente pela primeira vez, permanecendo com esse status constitucional até 1967.
Antes de voltar ao texto constitucional, em 1988, o instituto passou a figurar em duas normas que seguem em vigor: a Lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra), responsável por disciplinar as relações fundiárias no Brasil, e a Lei 6.969/1981, que trata especificamente de usucapião rural.
A usucapião rural é tema de diversos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que discutiram questões como a necessidade de georreferenciamento para definir os limites dos imóveis no campo, a utilização do instituto por empresas de controle estrangeiro e a possibilidade de usucapião de áreas menores do que o módulo rural (unidade de medida agrária expressa em hectares), entre outras.
Propriedade menor que o módulo rural admite usucapião
Em 2015, a Quarta Turma decidiu, por maioria, que é possível adquirir a propriedade de área menor do que o módulo rural estabelecido para a região por meio da usucapião especial rural.
A partir desse entendimento, o colegiado deu provimento ao recurso de um casal de agricultores (REsp 1.040.296) que, desde 1996, tinha a posse ininterrupta e não contestada de uma área de 2.435 metros quadrados, na qual residia e trabalhava. Na região, o módulo rural – área necessária para a subsistência do pequeno agricultor e de sua família – é definido em 30 mil metros quadrados.
“Se o imóvel sobre o qual se exerce a posse trabalhada possui área capaz de gerar subsistência e progresso social e econômico do agricultor e sua família, mediante exploração direta e pessoal – com a absorção de toda a força de trabalho, eventualmente com a ajuda de terceiros –, parece menos relevante o fato de aquela área não coincidir com o módulo rural da região ou até mesmo ser-lhe inferior.”
REsp 1.040.296
Ministro Luis Felipe Salomão
O ministro Luis Felipe Salomão, autor do voto que prevaleceu na turma julgadora, ressaltou a função social da usucapião especial rural. Segundo ele, o artigo 191 da Constituição, reproduzido no artigo 1.239 do Código Civil, ao permitir usucapião de área não superior a 50 hectares, define apenas o limite máximo possível, não a área mínima.
“Mais relevante que a área do imóvel é o requisito que precede a ele, ou seja, o trabalho realizado pelo possuidor e sua família, que torna a terra produtiva e lhe confere função social”, avaliou Salomão.
Admitida usucapião rural por empresa de controle estrangeiro
Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma estabeleceu que é possível usucapião de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira com capital majoritariamente controlado por estrangeiros, desde que observadas as mesmas condições para a compra de áreas rurais por pessoas estrangeiras – sejam naturais, jurídicas ou equiparadas.
A posição do colegiado se deu no julgamento do REsp 1.641.038, em que uma empresa do ramo alimentício pedia usucapião de uma propriedade localizada entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte.
Nancy Andrighi comentou que a legislação impõe uma série de condições para a aquisição de terras rurais por estrangeiros, pois o tema envolve a defesa do território e a soberania nacional. Isso se verifica, por exemplo, na Lei 5.709/1971, a qual regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país. Para a ministra, as disposições da lei se aplicam às empresas brasileiras com participação de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras detentoras da maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior.
“Não há nada no ordenamento jurídico que obste prima facie o reconhecimento da usucapião”, afirmou, ao determinar o retorno do caso à primeira instância para julgamento do mérito.
Georreferenciamento como requisito para usucapião rural
No julgamento do REsp 1.123.850, a Terceira Turma decidiu que a identificação do imóvel rural objeto de ação de usucapião deve ser feita mediante a apresentação de memorial descritivo que contenha as coordenadas georreferenciadas dos vértices definidores de seus limites.
Com esse entendimento, o colegiado atendeu ao pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul e determinou que os autores de uma ação de usucapião de imóvel rural apresentem o memorial descritivo georreferenciado da área no juízo de primeiro grau.
Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, a necessidade da medida decorre do princípio registral da especialidade, que exige a plena identificação do bem imóvel para efeito de registro público, a partir de suas medidas, características e confrontações.
A ministra destacou dispositivos legais que abordam a questão, como a Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) e o Decreto 5.570/2005, que estabelece, em seu artigo 2º, que a identificação georreferenciada do imóvel rural, nas ações ajuizadas a partir de sua publicação – como no caso analisado –, constitui exigência imediata, qualquer que seja a dimensão da área.
“Conclui-se que, tratando-se de processos que versam acerca de imóveis rurais, a apresentação de sua descrição georreferenciada, por meio de memorial descritivo, ostenta caráter obrigatório, constituindo imposição legal relacionada à necessidade de perfeita individualização do bem”, afirmou a relatora ao prover o recurso especial.
Se pedido não mudar, novos documentos podem ser juntados
Ao julgar o REsp 1.685.140, a Terceira Turma entendeu que é possível a simples juntada da planta e do memorial descritivo no curso de ação de usucapião rural, desde que não implique alteração do pedido formulado na petição inicial. Com isso, o colegiado determinou o prosseguimento de um processo iniciado por um morador de área rural contra uma mineradora de Minas Gerais.
Na origem do caso, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido da empresa para extinguir o processo sem resolução do mérito e admitiu a possibilidade de o autor suprir a falta de dados no memorial descritivo e na planta. Após sucessivos recursos negados, o caso chegou ao STJ, que manteve o mesmo entendimento.
O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou que eventuais alterações no memorial descritivo do imóvel podem ser feitas unilateralmente antes da citação; depois desta, somente com a concordância explícita do réu. Para o ministro, entretanto, o caso analisado não permitia concluir que a mera juntada da planta e do memorial descritivo georreferenciado tivesse representado alteração objetiva da demanda.
“No caso concreto, inexiste prejuízo aos litigantes, visto que, depois da apresentação dos documentos, o magistrado de primeiro grau determinou a intimação do demandado, dos confinantes e das Fazendas Públicas, em observância ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa”, observou Cueva.
Ação de usucapião rural admite reconvenção arguindo imissão na posse
Em outro julgamento relevante da Terceira Turma (REsp 2.051.579), sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi decidido que é possível, na ação de usucapião rural, propor reconvenção arguindo imissão na posse . Isso porque, segundo o colegiado, as duas modalidades de ação, além de seguirem o rito do procedimento comum, são conexas quando tratam do mesmo imóvel.
A turma julgadora se valeu desse entendimento para dar provimento a um recurso especial que pedia o conhecimento da validade do pedido reconvencional feito na origem do processo. Após decisões em sentidos diversos nas instâncias ordinárias, o caso chegou ao STJ.
A relatora lembrou que a ação de usucapião estava listada entre os procedimentos especiais do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), enquanto a ação de imissão na posse se submetia ao procedimento comum, o que impedia o pedido reconvencional de imissão na posse no curso da ação de usucapião. A partir do CPC/2015, entretanto, as duas modalidades de ação passaram a seguir o rito comum.
“Tem-se que a ação de usucapião e a ação de imissão na posse, além de seguirem o procedimento comum, são conexas, razão pela qual é admissível, na ação de usucapião, propor reconvenção arguindo que a posse reivindicada decorre da propriedade.”
REsp 2.051.579
Ministra Nancy Andrighi
De acordo com a ministra, o que importa, de fato, é que o artigo 343 do CPC em vigor permite ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.
“Considerando que na ação de usucapião discute-se a posse mansa do bem, e, na ação de imissão na posse, debate-se o direito à posse que decorre da propriedade ou de outro direito real (jus possidendi), haverá conexão entre as ações quando versarem sobre o mesmo imóvel”, esclareceu Nancy Andrighi.
Necessidade de registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR)
Ao dar provimento ao REsp 1.356.207, a Terceira Turma entendeu que o registro prévio da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural (CAR) é uma condição para o registro da sentença de usucapião rural.
Para o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de que a averbação de reserva legal seria necessária para o registro de qualquer ato de transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel rural. Nas instâncias ordinárias, entretanto, houve dúvida quanto ao caso da aquisição por usucapião de imóvel sem matrícula.
Em parecer, o Ministério Público Federal opinou pela necessidade de averbação e, segundo o ministro, aplicou corretamente o princípio in dubio pro natura, o qual “deve reger a interpretação ambiental para priorizar o sentido da lei que melhor atenda à proteção do meio ambiente”.
O relator afirmou que uma interpretação estrita do dispositivo legal poderia levar à conclusão de que a aquisição originária, por não estar expressamente prevista, estaria excluída da necessidade de averbação da reserva legal no ato de registro. Para ele, a dispensa, no caso de aquisição por usucapião, reduziria demasiadamente a eficácia da norma ambiental.
Sanseverino observou que essa interpretação levaria a um “resultado indesejável”, contrário à finalidade protetiva da norma. Ainda segundo o ministro, é possível tomar a palavra “transmissão” em sentido amplo, abrangendo também a usucapião.
“Nessa linha de raciocínio, seria o caso de se dar provimento ao presente recurso especial para impor a averbação da reserva legal como condição para o registro da sentença de usucapião”, concluiu o ministro.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):
Fonte: Notícias STJ
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