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Artigo – Notas sobre testamentos celebrados no exterior e seus efeitos no Brasil
30 DE JULHO DE 2024
A globalização das famílias, podendo ser este movimento entendido como a mudança de domicílio para países estrangeiros, constituição de casamentos e uniões estáveis entre pessoas de nacionalidades diversas, bem como a aquisição de bens fora do território nacional, enseja diversos desafios. Nesta sede, vale um registro sobre testamentos celebrados no exterior e sua eficácia em território brasileiro.
Importante assinalar que a análise aqui proposta não se refere a testamentos lavrados em Repartições Consulares do Brasil. De fato, o Manual do Serviço Consular e Jurídico, aprovado pela Portaria 457, de 02 de agosto de 2010, do Ministério das Relações Exteriores, em seu artigo 4.1.2, dispõe que os registros públicos civis ou notariais lançados nos livros consulares destinam-se, primordialmente, a atender à circunstância de ausência do Brasil das partes interessadas e têm plena validade enquanto estas se encontrarem no exterior, prevendo, ainda, que no Livro de Escrituras e Registro de Títulos e Documentos serão lançados testamentos. Ainda segundo o referido Manual, em seu artigo 4.9.7, a Autoridade Consular dará, por ofício, imediata ciência à SERE/DAC dos testamentos públicos que lavrar e dos cerrados que aprovar, devendo constar em ditos ofícios a data, o livro e a folha da lavratura do testamento público ou do Termo de Aprovação do testamento cerrado, bem como a completa identificação do testador, inclusive seu domicílio no Brasil, o local de registro de seu nascimento e, sempre que possível, o cartório, o livro, a folha e o número desse registro.
Os atos de última vontade devem ser analisados sob o ponto de vista da sua forma, da capacidade do testador e, ainda, sob o ponto de vista da sua substância. Em relação à forma, ou seja, a validade extrínseca do ato, aplica-se a lei do local em que o testamento foi realizado, ou seja, locus regit actum. Já quanto à capacidade do testador, trata-se de questão relativa ao seu estatuto pessoal e, portanto, aplica-se o disposto no art. 7º da LINBD, sendo a aludida capacidade regulada pela lei do domicílio do testador quando realizou o testamento. Quanto às disposições testamentárias, ou seja, quanto à substância do ato, aplica-se à lei reguladora da sucessão, que é aquela do domicílio do de cujus, consoante o art. 10 da LINDB. De fato, esta última regulará a eficácia das disposições testamentárias1.
Para que um testamento celebrado em país estrangeiro possa ser cumprido no Brasil, será necessário que seja traduzido por tradutor público juramentado, contendo apostila ou legalização consular e, ainda, devendo ser registrado no Cartório de Títulos e Documentos.
O desafio nessa análise é aquele da qualificação no Direito Internacional Privado, uma vez que, “o que um Estado considera como sendo questão de forma, para outro pode ser questão de substância”2. Há muitas teorias que explicam a qualificação no Direito Internacional Privado. Segundo Jacob Dolinger, o Direito Internacional Privado brasileiro aplica a lex fori, ou seja, a lei local para a qualificação em geral, com exceção dos bens e contratos e rejeita qualquer reenvio indicado pela lei estrangeira3 (LINDB, art. 16). Assim, a qualificação é o ponto de partida do processo conflitual e deve se reger pela lei do foro, pois, conforme a classificação que for dada, haverá ou não a aplicação da lei estrangeira, conforme seja a determinação da normativa do Direito Internacional Privado4. Assim, verificando o juiz que a qualificação da matéria não é idêntica em seu direito e no direito estrangeiro, atenta-se para a qualificação em seu próprio direito, para depois verificar, diante da qualificação em seu próprio direito, se deve ou não aplicar a lei estrangeira na hipótese.
Em matéria de testamentos, há exemplos interessantes. Uma situação emblemática é aquela do testamento conjuntivo, vedado pelas características essenciais do ato de última vontade (CC, artigo 1.863), que é revogável, personalíssimo e unilateral, para preservar a espontaneidade da manifestação de última vontade. Há quem defenda que essa questão é da substância do ato, pois o testamento de mão comum violaria os preceitos de ordem pública no Brasil, que proíbem os pactos sucessórios (Código Civil, artigo 426) e concebem o testamento de forma livre, espontânea e revogável. Dessa forma, mesmo se a lei reguladora da sucessão permitir o testamento conjuntivo, aqui no Brasil, este não poderia ser executado por afrontar a ordem pública5.
Em sentido oposto, posiciona-se Daniela Vargas, ao ponderar que aquele que lavra testamento conjuntivo no país de seu domicílio onde o formato em questão é permitido, não estará diante de um ato nulo e terá plena capacidade para testar sob essa forma, uma vez que a lei aplicável à sucessão não será a brasileira e o testamento estará condizente com a lei local onde o documento foi produzido, sendo aplicado o artigo 9º da LINBD: locus regit actum6. De fato, considerando que ao qualificar a hipótese segundo a lei brasileira, a questão se insere em matéria de forma, estando disciplinada no artigo 1.863 do Código Civil, em capítulo intitulado Disposições Gerais das Formas Testamentárias, uma vez lavrado em país no qual é admitido, aplicando-se aqui a lei estrangeira pelo domicílio do de cujus, não haverá óbice ao cumprimento do ato de última vontade7.
Condição de herdeiro e ordem de vocação hereditária, substituição, direitos dos herdeiros ou dos legatários, validade e eficácia das disposições testamentárias, limites à liberdade de testar, colação, modo de partilha e dívidas, são questões da substância da sucessão hereditária e, portanto, devem ser regidas pela lei do domicílio do autor da herança, como determinado pelo art. 10 da LINBD. No entanto, “a lei estrangeira aplicável à sucessão, em razão do domicílio do de cujus, precisará passar pelo crivo da ordem pública do país da situação dos bens para ser aplicável à partilha”8.
Questão interessante poderia ser aquela de previsões no Direito Português, denominadas de substituição pupilar e quase-pupilar (Código Civil Português, art. 2.298º), que permite que o ascendente nomeie herdeiros ou legatários ao filho menor ou incapaz de testar, sendo certo que esta substituição só poderá abranger os bens que o substituído haja adquirido por via do testador, mesmo que por força de sucessão legítima9. De acordo com o Direito Português, a substituição pupilar cessa logo que o substituído perfaça os dezoito anos, ou se falecer deixando descendentes ou ascendentes. Já a substituição quase-pupilar fica sem efeito logo que cesse a impossibilidade de testar ou se o substituído falecer deixando descendentes ou ascendentes. Sem dúvida, não são incomuns casos de pessoas que têm filhos impossibilitados de manifestar sua vontade testamentária e, assim, temem pelo destino do patrimônio que ditos filhos herdarão. Não raro, há divergências nas famílias e os herdeiros do filho com deficiência são justamente seus desafetos familiares.
Na hipótese de um testamento lavrado em Portugal com previsão de uma substituição quase-pupilar, sendo o filho com deficiência e o ascendente testador domiciliados em Portugal, poderia a referida previsão produzir efeitos no Brasil? Considerando que a lei aplicável à sucessão no Brasil seria a lei portuguesa e restando cabalmente comprovada a impossibilidade de o substituído testar, a resposta parece afirmativa. No entanto, trata-se de uma questão tormentosa, em virtude das características do testamento, que é ato personalíssimo e unilateral.
Uma última palavra deve ser dita em relação ao disposto no art. 10, § 2º, da LINDB, que dispõe que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder. O dispositivo em referência não está relacionado com a condição de herdeiro ou legatário, uma vez que esta é definida pela lei aplicável à sucessão. Trata o artigo em comento da capacidade para suceder. Assim, questões atinentes à indignidade, por exemplo, serão reguladas pela lei do domicílio do herdeiro ou legatário, o mesmo se passando para a hipótese de herdeiros submetidos ao regime de curatela, que precisarão observar a legislação do país de seu domicílio quanto à extensão dos poderes concedidos ao curador diante da herança a ser recebida. No Brasil, por exemplo, segundo dispõe o art. 1.748, II, compete ao curador, com autorização do juiz, aceitar pelo curatelado heranças, legados ou doações. Assim, havendo uma sucessão no exterior com herdeiro curatelado domiciliado no Brasil, a aceitação da herança, praticada pelo curatelado por meio de seu curador, dependerá de autorização judicial.
Fonte: Migalhas
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